Friday, March 27, 2009

Lo que sea


Para ler ao som de Sunday Morning do Velvet Underground



Éramos só nós duas, sabe? Eu e ela. Domingo pela manhã, depois de uma farra daquelas. Minha meia-calça preta rasgada do calcanhar ao joelho. A blusa dela mais transparente que o normal por causa do suor. Cabelos desgrenhados. Maquiagens borradas. Eu tinha passado a noite me agarrando com um cara e estava meio boba. Ela tinha pegado três e não estava nem aí. O meu cabelo vermelho L'Oréal Paris. O dela castanho natural. E nas nossas diferenças, nos encontramos de um jeito quase inesperado no meio da rua. Ela me abraçou forte. Eu retribuí.

- Eu não quero ir pra casa. É tão cedinho e o mundo tá tão bonito.
- Eu também não. Tava com uma vontade de andar. Inexplicavelmente. Me acompanha?

E fomos. Descalças.

- Eu quero sentir o chão. Descobrir a textura dessa cidade, os relevos, os pormenores.
- Eu quero sentir meus pés. Redescobrir o tato através deles, desvendar o sentido de caminhar assim tão sem sentido e sem destino.

Nem lembro ao certo quem disse o que. Até hoje ela me dá essa impressão esquisita de me completar - em frases, em gestos, em respostas. Sei que falamos uma para a outra o quanto aquilo, por mais estranho que parecesse, nos agradava muito e isso era tudo o que importava.

- Eu sinto como se estivesse transpondo milhares de abismos a cada passo. As pessoas estão tão preocupadas em conhecer um infinito imensuravelmente grande que esquecem que existe um imensuravelmente pequeno. Eu estou naquele estágio de embriaguez em que poderia fazer algo estúpido como pular de um precipício por ter sede de tudo, mas não. Minha loucura é dar um passo de cada vez.
- Siga onde vão meus pés que eu te sigo também. É uma música, mas pode ser nossa loucura. Eu te guio e você me guia através dos abismos do asfalto. Que tal?
- Para onde?
- Ao infinito e além. Os pés hão de saber para onde nos levar.

De repente, alguma de nós começou a cantar.
"Sunday morning, praise the dawning
It's just a restless feeling by my side"
Quando vimos, estávamos abraçadas e sorrindo e gritando a plenos pulmões - Watch out, the world's behind you / there's always someone around you who will call / it's nothing at all.
[Velvet underground escorrendo no veludo da manhã.]
E o mundo inteiro pareceu pequeno para nossos passos de gigante.

Ela tem um jeito próprio de andar, bem lento, quase pausado. Parece que está sempre apreciando a paisagem ao redor. Ela é leve, levíssima; quase uma pluma, uma bruma, um sopro de ar. E encanta.

- Eu não sei até que ponto a realidade é uma projeção da minha mente, mas tudo me parece tão real que assusta. E não existe nada que possa capturar essa plenitude.
- Let me take you down, 'cause I'm going to strawberry fields. Nothing is real... Hoje o mundo é nosso. Ele pode ser o que a gente quiser. Realidade ou fantasia, enjoy it.

Escrevemos num muro uma frase e fomos embora para.

Andar... Até onde os pés aguentarem. Sem direção. Há de se explicar como saberemos onde parar. Há de se entender por que de repente olhamos uma para a outra com sorrisos idênticos. "É aqui".

Flores cor-de-rosa minúsculas enfeitavam a calçada e o topo das árvores. Deitamos alí mesmo para brincar de decifrar nuvens. Todas passando apressadas e se transmutando ligeiras em suas formas de vapor. Nos sentimos um pouco como elas. Em constante mutação, percorrendo o céu em peregrinação até desabar feito chuva quando não aguentássemos mais carregar o nosso peso.

[Walking in the sky
We're so high]

- Aquela lá parece uma moça solitária carregando um guarda sol.
- Pra mim é um porco espinho gigante!
- Agora tá mais pra um cavalo alado.
- São duas meninas brincando de roda.
- Sou eu e você na ciranda louca da vida.
- É uma bola de fogo que a nuvem-dragão lá de trás soprou.
- É uma poesia.
- Um carro de boi, uma enxada, um pai, um filho.
- Lo que sea, hermosa.

E foi.